sábado, 1 de novembro de 2008

Doces terrores (para a Guidó, com humor... negro)

"É de manhã.
O rapazinho correu a atravessar a Avenida Madero. Passou através do perfume a incenso que vinha de muitas igrejas e do cheiro a carvão de milhares de almoços que se estavam a cozinhar na cidade. Envolviam-no pensamentos de morte. Nessa manhã, a cidade do México estava fria, com presságios de morte. Por toda a parte, havia sombras de igrejas e mulheres vestidas de preto e o fumo das velas e das brazeiras trazia-lhe às narinas um cheiro a morte. E o rapazinho não achava nada disto estranho, pois neste dia todos os pensamentos eram de morte.
Era El Dia de Muerte, o Dia de Finados.
Nessa data, até nos acantos mais remotos do país havia mulheres sentadas em frente de tabuleiros a vender caveiras de açúcar branco, cadáveres de açúcar candi para serem chupados e comidos. Em todas as igrejas se rezavam ofícios e em todos os cemitérios havia velas acesas. Bebia-se muito vinho e cantava-se em voz de falsete.
Raimundo corria, sentindo dentro de si o universo; todas as coisas que o tio Jorge lhe dissera, tudo aquilo que ele próprio contemplara com os seus olhos. Nesse dia garndes coisas deviam acontecer em lugares longínquos como Guanajuato e no lago Patzcuaro. Aqui mesmo, na grande praça de toiros da Cidade do México, estavam a esta hora os trabajandos a alisar a areia, enquanto se iam vendendo os bilhetes, e os toiros, com o nervosismo, urinavam continuamente, de olhos esbugalhados e fixos, escondidos nos curros, à espera da morte.
No cemitério de Guanajuato, os grandes portões de ferro encontravam-se abertos de par em par para que os turistas pudessem descer a sombria escada de caracol que entrava pela terra dentro e fossem passear nas catacumbas onde morriam os ecos, e contemplar as múmias rígidas como brinquedos, encostadas às paredes. Cento e dez múmias solidamente ligas à pedra com arames, de bocas escancaradas pelo horror e olhos encarquilhados. Corpos que rangiam quando alguém lhes tocava.
No lago Patzcuaro, na ilha de Janitzio, as grandes redes de pesca adejavam quais borboletas, para apanharem os peixes prateados. Toda a gente da ilha - dominada pela gigantesca estátua do Padre Morelo - começara já coma cerimónia de beber tequilha, dando assim início às celebrações do Dia de Finados.
Em Leñares, uma pquena vila, um camião atropelara um cachorro e nem sequer se dera ao trabalho de parar para ver o que fizera.
O próprio Cristo encontrava-se em todas as Igrejas agonizante e coberto de sangue.
E Raimundo corria, banhado pela luz de Novembro, Avenida Madero adiante.
Oh, que doces terrores! Nas montras alinhavam-se as caveiras com nomes escritos nas níveas frontes: José, Carlota, Ramona, Luisa! Tudo pintado com chocolate nas caveiras e ossos cristalizados.
O céu, lá no alto, era de esmalte azul e a relva lembrava uma chama verde, enquanto ele passava a correr diante das glorietas. Levava apertada na mão uma moeda de vinte centavos com que poderia comprar muitos doces, tais como pernas, queixadas, costelas pra chupar. Nesse dia era possível comer a Morte [...]."
Ray Bradbury, "Dia de Finados". Conto inserido na colectânea As Máquinas da Alegria. Trad. portuguesa, Livros do Brasil, s.d [1ª ed. americana 1949].


4 comentários:

Margarida Araújo disse...

Antes que ela nos coma.
Obrigada João
Brrrrrrrrrr

Anónimo disse...

Mas com moderação, que tanto acúcar também é um risco.
MT

J J disse...

E haveria melhor comentário que um do próprio autor?
" He then shouted at me - Live forever!
I thought that was a wonderful idea, but how did you do it?"
Estas palavras foram roubadas no site de Ray Bradbury, que vocês devem visitar (e onde o autor fala de si próprio e da sua obra).
http://www.raybradbury.com/

"People call me a science fiction writer, but I don't think that's quite true. I think that I'm a magician who is capable of making things appear and disappear right in front of you and you don't know how it happened."

João B. Serra disse...

Concordo inteiramente. Os dois extractos que aqui publiquei demonstram bem que estamos perante um escritor que não pode ser "arrumado" na prateleira dos "science fiction writers", mau grado ter sido editado em Portugal na colecção "argonauta" (os grandes romances da ficção científica) da editora Livros do Brasil.