segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Memórias. O mistério das noites do Virgílio

No terceiro período do 7º ano, os meus pais alugaram-me um quarto nas Caldas. Na contabilidade da decisão entraram as despesas com o transporte e o tempo perdido em viagens diárias de mais de duas horas. Na Rua da Electricidade, ajustaram quarto e refeições por uma módica quantia. Na mesma casa era inquilino o Virgílio.
Já nos conhecíamos, evidentemente, mas a partilha da casa aproximou-nos. O Virgílio tinha aportado ao Externato Ramalho Ortigão apenas naquele ano de 1965/1966, com estadia anterior em outros colégios. Era fácil estabelecer contacto com ele e, apesar do singular rumor sobre a suas origens sociais, simpatizava-se depressa com o seu feitio bem disposto e despreocupado. Dizia-se que era monárquico, condição intrigante e cujo alcance exacto desconhecíamos. Parece que descendia de linhagens nobiliárquicas, coisa que no ERO naquele tempo não tinha expressão significativa. De qualquer modo, esse eventual tónus diferenciador não parecia sobrepor-se ao trato afável com que lidava com todos nós. O único vestígio aristocrático parecia residir num enigmático “y” que ornava o seu segundo nome. Virgílio Ruy. Virgílio Ruy Rodrigues Pestana de seu nome completo.
Os pais do Virgílio habitavam em Alcobaça. Conheci-os num fim de semana agenciado para me introduzir no meio literário alcobacense. Nada na maneira como me receberam me pôs de alerta relativamente a atitudes invulgares, pelo que fiquei a duvidar do real valor da sobrevivência do ípsilon. O Virgílio propusera-se apresentar-me ao grupo constituído por Alberto Costa, António Maria de Sousa, Levi Condinho, Leonel Fadigas e Rui Rasquilho. Eu mostrara um especial interesse em conhecer o primeiro, um ano mais velho, a frequentar já o curso a que eu na altura me destinava, Direito.
No ERO, preparando-se o Virgílio para seguir Económicas, não frequentávamos a mesma turma e não coincidíamos nos horários. Mas almoçávamos e jantávamos à mesma hora, na casita modesta da Rua da Electricidade, ao som do Rádio Clube Português, dos “Parodiantes de Lisboa” ou do “Quando o telefone toca” de Matos Maia.
Duas ou três vezes por semana eu rumava, após o jantar, à residência paroquial onde partilhava o serão do Padre Renato entre o De Bello Gallico de Caius Julius Caesar (o meu encargo) e o Tintin do Hergé (o divertimento do padre). Nesses dias, era suposto o Virgílio ficar no seu quarto, a preparar as aulas e os pontos, mas ele aproveitava a oportunidade para sair. A minha companhia dispensava-a mal chegava à esquina da Avenida. Um dia vi-o entrar num “Mini” conduzido por um dos filhos de Alberto Pinto Ribeiro, o sócio-gerente da Secla, e fiquei apreensivo com o impacto de tais saídas na performance académica, já de si periclitante, do meu companheiro.
Ele estava porém acima de tudo preocupado com a reacção dos pais, se acaso a nossa senhoria os informasse da hora avançada a que o seu filho por vezes regressava a casa. Pediu então a minha conivência para um expediente que congeminara. Como o meu quarto dava para a rua, pediu-me que deixasse a janela apenas encostada, para que ele pudesse entrar por ali e seguir para o seu quarto, evitando o risco de alertar a senhoria com os estalidos da fechadura da porta.
Anui, solidário, sem perguntas. Até ontem, no Encontro dos antigos alunos do ERO (17 de Novembro de 2009).

Ficámos na mesma mesa. Nos 43 anos que decorreram sobre esse longínquo terceiro período (numa época em que os tempos lectivos eram ternários e não binários) vimo-nos três vezes – uma na faculdade, outra num movimento de professores e outra ainda no funeral de um antigo colega. Conheci desta vez a mulher e o sogro, que o acompanharam no almoço da "Lareira". Falámos sem pressas dos desafios que enfrentamos hoje e prometemos visitas mútuas aos locais onde criamos novos mundos. Foi então que a pergunta nunca antes feita emergiu e ganhou urgência. – Virgílio, onde iam vocês no Mini, que nunca te ouvir chegar?
E ele, numa resposta pronta, como se há muito a tivesse preparada: – Íamos a Lisboa, ao Aeroporto, e voltávamos de seguida. Sabes, o Luís saía furtivamente de casa, levando o carro da mãe. Ela não sabia de nada. Era uma viagem demorada. Como sabes. Hora e meia para lá, tomávamos qualquer coisa no Aeroporto, hora e meia para cá. Ali no Carregado passávamos sempre com o coração nas mãos. Havia um posto da GNR, lembras-te? E o Luís a conduzir sem carta... Mas o Aeroporto, João! O gozo que aquilo nos dava!
[Publicado em colaboração com o blogue dos Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão]

2 comentários:

J J disse...

As viagens de automóvel constituíam, nos meados dos anos sessenta, um luxo e um prazer, independentemente do destino ou mesmo da sua utilidade. Poucos, muito poucos, jovens tinham carro e, por isso, entre as camadas jovens isso era ainda mais evidente.

Este magnífico retrato de época do João Serra dispensa os meus elogios, mas não resisto a confidenciar-vos que evocou em mim a recordação de meia dúzia de episódios que vou talvez recordar no Blog dos Ex-ERO(passará a ser esse o seu único defeito...).

Esperamos mais memórias, neste e no nosso blogue.

Um abraço.
JJ

Xico disse...

o fascínio dos aeroportos nos anos 60. Sei o que isso era. Nunca se sabia bem se era por causa dos aviões, por causa da gare cosmopolita, se por causa daquela aragem que trazia um mundo livre e moderno tão rapidamente para dentro do nosso cinzentismo.
Hoje não o compreenderão a si nem ao seu amigo, pois o aeroporto não passa de uma gare de autocarros onde nem os aviões se veem.