quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Rui, agora oficialmente sem ipsilon, visto por Ana

No blogue dos antigos alunos do Externato Ramalho Ortigão, Ana Braga, comentou assim o meu post anterio r:

Quando conheci o Virgílio, já iam bem distantes esses tempos da sua juventude, penso que caracterizada por uma rebeldia vivida com alguma moderação - secretas escapadelas nocturnas e congeminações de programas de fim de semana, cujo objectivo seria, inevitavelmente, o de se divertir à grande, longe da vista e da alçada parental, sempre atenta, expectante e ansiosa, dado tratar-se de um filho único, muito protegido e em relação ao qual se iam tecendo grandes e pesadas expectativas.
Naquela época, com aquela idade, “divertir-se à grande” era, se bem me lembro, dado ser da mesma geração, estar com um punhado de amigos - e de miúdas -, impressionar pela palavra, com uma ou outra consideração filosófica pelo meio ou sentar-se ao volante de um carro, ouvir música e dançar, fazer umas quantas tropelias à socapa, jogar às cartas, pondo à prova a sua perspicácia, provocar situações divertidas insólitas ou caricatas, sempre com o riso a estalar, numa alegria transbordante de quem tem uma vida pela frente e se sente imortal. Imagino que tudo isto o Virgílio fazia em doses reforçadas, de certo mais interessado no convívio do que em “levantar as notas”.
Ao ler a belíssima crónica do João Bonifácio Serra onde tão bem caracteriza essas vivências juvenis, reconheci um Virgílio que eu não tive ocasião de conhecer, o Virgílio quando jovem. Esse eu só conheci mais tarde através dos seus próprios relatos, das recordações partilhadas com amigos, em encontros esporádicos e das fotografias a preto e branco que há lá por casa, em que ele aparece de fato e gravata, com um ar discreto de menino exemplar - mas que a mim não me engana. Enfim, o Virgílio, esse mesmo: o Virgílio Ruy com ípsilon.
Conhecemo-nos aos trinta e tal anos, numa fase do nosso percurso em que já tínhamos percebido há muito que não éramos imortais. No entanto, nessa altura, as circunstâncias da nossa situação profissional, uma vez que nos encontrávamos destacados, numa espécie de licença sabática, a frequentar uma pós graduação, transformou-nos de novo em estudantes, integrados numa turma de outros colegas de profissão, com direito a saídas em grupo, almoços no Bairro Alto, idas ao cinema e ao teatro, intermináveis conversas e serões dançantes nos lugares mais in da capital, alguns dos quais bastante exóticos e divertidos, lá para os lados de S. Paulo, num antigo palacete a cair de velho, onde se viviam agitadas noites crioulas. Foi esse Virgílio simpático, excelente comunicador, afável, de trato fácil e muito bem disposto a que o João se refere no seu divertido texto, que eu conheci nos anos oitenta e cujas características, as já referidas e mais umas quantas, me cativaram. O facto é que vim a casar com ele em 1989. Na altura, todos nós, seus colegas, achámos curioso o pormenor do “y” no seu segundo nome, provável resquício de algum traço conservador de família, pensávamos…
Vim a saber mais tarde que os nomes próprios que o identificam, nem sequer foram escolhidos pelos pais, que à data do seu nascimento eram muito novos, tendo-se submetido à escolha feita pelos padrinhos da criança. Desconfio até que nem seria esse o nome da preferência deles e, muito menos do próprio rapaz, mas isso é uma outra história e o facto é que assim foi registado: Virgílio Ruy Rodrigues Pestana, sendo este o nome que figura no seu arquivo de nascimento, como eu própria posso testemunhar.
Estou convencida de que mesmo quando não gostamos do nosso próprio nome, acabamos por assumi-lo, a ponto de o sentirmos como a nossa segunda pele. Julgo que tal aconteceu com o Virgílio e aquele “y” no Ruy passou a ser a sua imagem de marca, uma espécie de impressão digital que ele habituou a identificar na infância, logo que aprendeu a ler e verificou que os outros Ruis eram diferentes.
Ora, depois de tantos anos com esse nome, aqui há tempos o Virgílio chegou a casa possesso. Um funcionário da repartição de Finanças da nossa área de residência, pura e simplesmente, confiscou-lhe o cartão de contribuinte. E qual o motivo? Alegando que Rui não se pode escrever com y. Onde já se viu? Tem de ser com i.
Pobre Virgílio, de nada lhe valeu o seu poder de argumentação, nem os anos de treino de bom comunicador, nem a argúcia, nem a exibição da própria certidão de nascimento, ali, preto no branco. A decisão do funcionário foi irrevogável – confiscou-lhe o cartão e mandou fazer outro. No entanto, condescendente, lá admitiu:
- O Senhor pode continuar a assinar com y, se quiser. Mas para efeitos fiscais o seu segundo nome passa a ser Rui.
- É de bradar aos céus – lamentava-se o Virgílio. – Com tantos nomes disparatados que hoje em dia se vêem por aí, como: Cléber, Bryan, Sandokan, Vanessa, Mikael, ou Vânia, que no nosso tempo era nome próprio de homem nos romances Russos e logo aquele ignorante resolveu embirrar com o meu nome.
E assim se constata o poder que detém hoje em dia um obscuro funcionário de uma Repartição de Finanças. De repente, quando menos se esperava, saiu da obscuridade para aniquilar aquele “enigmático” ípsilon que ali se mantivera dignamente durante tantos anos, tendo até sido considerado como um “vestígio aristocrático” nos tempos do colégio.
Escusado será dizer que o Virgílio continua a assinar Ruy, com muito orgulho.

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