terça-feira, 24 de agosto de 2010

Facebook: as razões de Pedro Mexia

No Público de Domingo passado:

Desamiguei-me


São já 500 milhões. E 25 milhões de novas adesões por mês. Um sucesso destas proporções significa que o Facebook dá às pessoas aquilo que as pessoas querem. Mas há sempre fregueses descontentes. Eu, por exemplo, que encerrei há dias a minha conta. Nada que 25 milhões e 1 novos utilizadores não compensem.


Há uns anos, uma amiga minha, que estudava em Cambridge, falou-me com entusiasmo duma coisa chamada "facebook" (pronunciar à inglesa). Não admira o buzz em Cambridge, pois a engenhoca nasceu na universidade de Harvard, a 4 de Fevereiro de 2004. Mark Zuckerberg, um geek de 19 anos, teve a ideia de usar o "facebook" de Harvard, ou seja, o directório fotográfico dos alunos, pô-lo on-line, e usar essa informação para detectar as miúdas mais giras da universidade. Não é a mais nobre das ideias, mas também não é a menos nobre. A minha amiga, que devia ser popular em Cambridge, gostou.


Zuckerberg justificou a criação do Facebook dizendo que ninguém entra em Harvard pelo seu aspecto físico, mas que toda a gente é julgada em Harvard pelo aspecto físico. Inspirado noutras redes sociais, o miúdo criou uma base de dados onde as pessoas deixavam o nome, fotografia, interesses, ideias e estado civil. O Facebook tinha uma vantagem em relações a muitas outras redes, que era o facto de não haver anonimato nem pseudónimos. As pessoas eram quase sempre quem diziam ser, e a sua identidade era autenticada pelos amigos.


Se o combate ao anonimato é um dos grandes méritos do Facebook, a noção de "amigo" é uma das mais abusivas. Um "amigo do Facebook" pode ser de facto um amigo, mas também um conhecido, um colega ou um total desconhecido. Basta que alguém nos aceite como "amigo" e somos logo amigos. O Facebook, no entanto, tem um limite de 5000 amigos por pessoa, ou seja, cerca de 4995 a mais do que na vida real. A lista de amigos no Facebook é usada como um troféu, e o acto de "amigar" ou "desamigar" alguém no Facebook tornou-se um evento com graves repercussões éticas.


Quando a nova rede social foi criada, Harvard aderiu em peso. Num mês, três quartos dos alunos já tinham uma conta. O jornal estudantil Harvard Crimson detectou com perspicácia as causas do sucesso: "desejo de integração", "vaidade" e "voyeurismo". Só que o sucesso alastrou, de Harvard para Stanford, depois para outras universidades, depois para os liceus, depois para o mundo dos adultos. De repente, Zuckerberg passou de geek a CEO. Deixou Harvard, formou uma empresa, viu os gigantes da Net a quererem comprar o Facebook, e começou a levar-se a sério, embora ainda use t-shirt, jeans e ténis. Há quem defenda que as redes sociais são o terceiro grande mecanismo de agregação de competências, depois da burocracia e do mercado, mas Zuckerberg entusiasmou-se com o seu brinquedo, e anuncia mesmo a chegada de uma sociedade potlach, onde todos contribuímos para o bem comum e promovemos a "democracia digital". Zuckerberg acha que o Facebook criou uma "cultura da transparência", e toma isso como um elogio.


É certo que o Facebook, como a Net em geral, permite que encontremos pessoas com interesses comuns aos nossos, o que de outra maneira não aconteceria. Que é mais um modo de divulgar informação. Que é uma boa ferramenta para causas públicas. Mas todas essas vantagens não compensam uma grande desvantagem: a perda da privacidade. Desde o início que Zuckerberg luta contra as acusações de devassa. No entanto, nenhum dispositivo de aumento da privacidade impede que o Facebook seja perigoso, pois são os utentes que de livre vontade divulgam em público a sua vida. Têm surgido inúmeras encrencas por causa da exposição insensata de fotografias pessoais no Facebook, erro que já afectou casais, empresas, agentes secretos. E a todo o momento somos confrontados com aquilo a que os americanos chamam TMI: too much information. A "sociedade da informação" consiste em sabermos mais sobre a vida pública. Sabermos mais sobre a vida privada não é um avanço civilizacional.


Ao contrário do que Zuckerberg sempre disse, o Facebook não funciona como prolongamento digital das nossas relações pessoais; é na prática uma "segunda vida", que substitui as relações presenciais, cria amizades imaginárias, incentiva a curiosidade doentia, põe toda a gente a viver em público. Uma coisa é a noção, agradável, de uma partilha de notícias, imagens, vídeos, ou então a comunicação entre amigos que vivem distantes; outra coisa é a invasão grosseira da privacidade, uma invasão consentida mas nem por isso menos preocupante.


E o Facebook, como pólo da nossa identidade (digital), tem outro grande inconveniente, que é o facto de agregar os "amigos" numa única plataforma. Uma vida social saudável exige um certo grau de compartimentação. Conhecemos pessoas em contextos diferentes, não as misturamos, mantemos diversos papéis sociais. Mas o Facebook empilha "amigos". Pessoas que não têm nada a ver umas com as outras e que nem sequer traçam um "mapa relacional" fidedigno. Eu gosto de ser coisas diferentes para pessoas diferentes, e gosto de poder escolher as minhas relações sem a coacção moral de "amigar" ou "desamigar" alguém em público. O Facebook está sempre a exigir de nós decisões dessa natureza. Ora eu não tenho nada contra, digamos, os meus colegas de liceu, mas será que quero conviver com eles, agora, ainda que on-line? Não quero, o liceu foi há séculos, não tem nenhum interesse esse regresso ao passado. E apagar as pessoas com quem nos zangamos ou que se zangam connosco? E expor à malícia alheia os nossos interesses amorosos? E ter ciúmes on-line? E saber na Net o que devíamos saber em pessoa?


Comigo não funcionou. Acho a cultura da transparência uma cultura totalitária. Desamiguei-me.

Pedro Mexia

2 comentários:

Cláudia disse...

Na realidade acentua uma cultura de relacionamentos nas redes sociais cujo fenômeno de inclusão, tem absorvido a estrutura para a formação de um reino, o 4º “virtual”.
O Facebook com o conceito de uma etiqueta social, destaca arranjos em padrões por gêneros e afinidades, na tentativa de racionalizar afetividades no campo das necessidades humanas. Sendo que, “amizade” caracteriza laços de convivência que idealizam uma afetividade de fato. Tal sentimento, e que muitas vezes na rede, cuja fragilidade furta-se da verdade ou, falta da ética, na prática desta convivência de fato, não tem mobilizado os sentidos de quem toma partido de novas opções deste tipo de busca, traídos pela facilidade das ditas “amizades”. E a falta de privacidade ou a transparência, deste reino virtual... Mas, a agravante é a sugestão para crianças e adolescentes que amizades, tão somente nasçam desses perfis que apenas agrupam pessoas, sintetizando o estímulo para concorrer ao número de indivíduos que possam agrupar. O Sr. Pedro Mexia, foi feliz na colocação, mas tem o poder de discernimento de suas escolhas. Como fica, quem não tem?

Isabel X disse...

Uma vez conversei sobre este assunto com os meus alunos. Fui-lhes perguntando quantos "amigos" tinham no facebook. Eles respondiam números invariavelmente na ordem das centenas. Quantos mais tinham, mais orgulhosos pareciam.

Perguntei-lhes a seguir se lhes parecia possível ser amigo, mas amigo mesmo, de facto, de tanta gente. E de gente que se conhece de um modo tão peculiar.

Honestamente, acabaram por reconhecer que não, que isso era uma impossibilidade.

Se as pessoas tiverem essa consciência e perceberem que o uso da palavra "amigo", nesse contexto, é abusivo, porque não estar no facebook?

Eu não sinto essa necessidade, mas aceito-a e compreendo-a nos outros.

Para mim a amizade é uma virtude. Tenho muito poucos amigos (ia acrescentar "verdadeiros", mas só esses é que são os amigos!).

Os amigos são sagrados para mim; de uma certa forma, são família, mas aquela família com que a vida me fez deparar e que implicam uma escolha minha e deles.

Eu era capaz de dar a vida pelos amigos! Poucos, claro...

- Isabel X -