sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Como Keynes descobriu

Numa crise, como num furacão, as intenções e finalidades das personagens implicadas contam pouco. O mesmo não podemos dizer quanto ao processo de criação de uma nova sociedade.
Já percorremos metade do caminho: o passado desapareceu, separámo-nos dele. É pois mais fácil sondar os contornos do mundo que aí vem.
O nosso afastamento de um modelo económico em crise está já muito avançado: já não ouvimos cantar loas ao neo-liberalismo que não se apresenta já como triunfante. Descobrimos com espanto que um número impressionante de grandes dirigentes se comportaram como ladrões – ou escroques. A imagem dos homens que dirigiam os bancos e as grandes empresas, sobretudo nos Estados Unidos, inverteu-se em poucos anos. O que não significa, evidentemente, que todos mereçam condenação. Tudo se passou durante alguns meses (ou alguns anos) como se o mercado, no qual o liberalismo depositava toda a confiança se transformou numa multiplicidade de centros de decisão, muitas vezes clandestinos. E os maiores bancos procuram ainda hoje defender os seus privilégios, mau grado as fortes reacções de um público atingido pelos efeitos da crise.
Os neo-liberais quiseram fazer-nos crer que as leis da economia eram inescapáveis, que não teríamos possibilidade de controlar a conjuntura e ainda menos de nos libertarmos de realidades “estruturais”. Ora, são precisamente os defensores deste determinismo económico que nos aparecem hoje como os principais responsáveis de uma crise que em larga medida desencadearam e desenvolveram, esquecendo, em nome de interesses predominantemente pessoais, as necessidades de empresas por cuja sobrevivência deviam lutar sem desfalecimentos. A economia financeira separou-se da economia real e rompeu os laços com a sociedade da qual devia permanecer indissociável. Até aqui raramente tínhamos ouvido falar de triliões de dólares ou euros. E é no entanto a esta escala que se realizam as operações que se destinam a repor em circulação a moeda congelada pelo medo. Percebemos, porém, que não basta condenar alguns responsáveis. Se a importância de alguns homem pode ser muito elevada, em particular a dos governantes, e se a opinião pública não exerce por seu turno grande influência, pois intervém demasiado tarde, é sempre possível aos governantes, como Keynes descobriu, reconstruírem o que foi destruído ou quebrado pela acção de algumas dezenas de aventureiros ou algumas centenas de traders pagos em centenas de milhares de euros. Estas notas simples visam sublinhar a hipótese de que seria perigoso concentrar a nossa atenção nas consequências da crise e na forma de sair dela, quando o que vivemos enfraquece a sociedade no seu conjunto, dela fazendo uma vítima dos financeiros. É por isso que é urgente elaborar novas categorias de análise: tanto a própria crise é um teatro sem autores como a saída da crise e a formação de uma nova sociedade dependem de iniciativas a tomar pelo governos ou a impor pelas próprias vítimas.

Alain Touraine, Aprés la Crise. Paris, Seuil, Septembre de 2010.p. 55-57.
Corrigido depois do comentário de A. P. Carvalho:
Alain Touraine, Après la Crise. Paris, Le Seuil, septembre 2010. p.55-57.

3 comentários:

Ana P. de Carvalho disse...

Caro "Mestre" (divino, diria a Alice), como sei que és um ser de rigor, aqui te deixo corrigida a nota da tua citação: Alain Touraine, Après la Crise. Paris, Le Seuil, septembre 2010. p.55-57.
O acento é grave (e a situação também), os meses em francês não comportam maiuscula e o "de" é apenas português. As "cinzas" agradecem-te...

João B. Serra disse...

As tuas correcções circunscreveram-se à citação: Imagine-se o que sucederia se te tivesses atido ao texto da tradução!...
Obrigado.

Chantre disse...

Já agora, nunca, em francês formal, o "prénom" seria indicado em primeiro lugar. Lana caprina, eu sei.