quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Mundos paralelos

O princípio é também a entrada num mundo completamente diferente: um mundo verbal. Lá fora, antes do início, existe, ou supõe-se que exista um mundo completamente diferente, o mundo não escrito, um mundo vivido ou vivível. Passado esse limiar, entra-se noutro mundo, que pode manter com o primeiro relações decididas de cada vez, ou nenhuma relação. O início é um lugar literário por excelência porque o mundo lá de fora por definição é contínuo, não tem limites visíveis. Estudar as zonas de confins da obra literária é observar os modos como a operação literária implica reflexões que vão para além da literatura mas que só a literatura pode exprimir.
Os antigos tinham uma clara consciência da importância deste momento, e abriam os seus poemas com a invocação à Musa, justa homenagem à deusa que custodia e administra o grande tesouro da memória, de que fazem parte todos os mitos, todas as epopeias e todos os contos.

Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio. 3ª edição. Lisboa, Teorema, 1998. p. 150.

2 comentários:

Isabel X disse...

Tal como na literatura, também na vida os antigos sabiam que os actos deviam proceder de invocações aos deuses. A religião não era uma devoção mas uma prática que dispunha à eficácia. Por exemplo, o Culto Cívico em Atenas tendia a colocar Atena (Pan-ateneias) ou Dioniso (Grandes Dionisíacas, de onde provirá o teatro grego) do lado dos homens, propiciando-lhes a desejada prosperidade da pólis. Eram grandes momentos de comunhão cívica e colectiva que conferiam significado profundo às práticas de cidadania.

Lembrei-me disto pelo texto de Italo Calvino sobre a ligação entre a literatura e a vida. Mas também porque dei comigo a fazer esta análise sobre o culto cívico de Atenas numa reunião a que fui esta semana para analisar a cultura ou a política cultural na cidade onde moro: Caldas da Rainha. Os presentes riram-se, claro, e bem. Ir buscar exemplos à Grécia antiga, cinco séculos antes de Cristo, para neles nos revermos agora, é pouco comum.

Dessacralizadas, as sociedades actuais têm dificuldade em agir colectivamente de um modo verdadeiramente empenhado e sentido, como se disso dependesse a própria sobrevivência. No entanto, é disso que se trata: é a sobrevivência dos lugares e das comunidades que está em causa.

- Isabel X -

Cláudia da Silva Tomazi - Brasil disse...

Se me permitem. Talvez o mundo paralelo possa ser o que entendemos por metáforas. Transição de pensamentos que interpreta a ordenação matemática de algarismos e signos, devolvendo ao ser racional a possibilidade de compartilhar a amplitude de sentimentos desconhecidos, mas, que despertam sua virtus. Esta é a responsabilidade da arte. O mundo paralelo também pode ser estudado através de fractais de fuga do tempo.

Com mais clareza, exemplo do que chamam de Insight:
Diálogo da Pressa e a Eternidade.

Quando sou peixe nado, nado com pressa.
Quando sou caça fujo, fujo com pressa.
Sê um corte... Sangro uma prece! Quando fui apressada navalha.
E quem é você eternidade?
Sou a prece.