quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Lisboa em meados do século XIX

Lembram-se de Lisboa, no estado em que ainda todos nós a conhecemos?
Tudo às escuras...
[...] 
De vez em quando vinha algum episódio justificar a lei da harmonia e dar maior feição ao génio melodramático da quadra. Abriam-se, por exemplo, as portas do Limoeiro, e aí rompia pela cidade inteira a vasta cambada de malfeitores. Ferviam os tiros pelas ruas: tropa para um lado, tropa para outro; daqui facínoras, dacolá soldados; vivia a cidade em sustos.
Nunca se tinha certeza de que as lojas não fechassem de dia. Dormia-se de espada à cabeceira. Houve quem enriquecesse a vender apitos!
[...]
A população vivia assombrada; a cidade, apesar do céu de anil e do Tejo de cristal dos poetas, estava feia. Em se saindo das ruas da baixa, mudava logo o aspecto: fazia horror.
Cordas à janela, com roupa a secar.
Galinhas às portas.
Um porco dentro da loja.
Rebanhos de pequenitos a brincar nas escadas, acocorados nos degraus aos cinco e aos seis, o mais velho com o mais novo às costas, esfrangalhados, sem meias, sujos, de carinhas pálidas e amarelentas.
Garotos em bandos, à pedrada, pelo meio da rua, saltando, correndo, esbarrando em quem passava.
Ao portal, a mãe a remendar o fato, a filha a fazer meia; a avó, idiota, sentada lá dentro a um canto.
Lojas térreas, húmidas, impossíveis no inverno; um cheiro de trapo podre a exalar-se daquilo tudo!
O luxo exterior das vivendas era papagaiaos; quem não tinha papagaio, tinha uma arara; quem não tinha arara, tinha um periquito; quem não podia sequer ter periquito, punha um papagaio...de pau na janela da sacada.
À hora do largar da agulha falava-se de janela para janela como se o facto de ser vizinho a alguém autorizasse a travar conhecimento; pedia-se um ramo de salsa, o saca-rolhas emprestado, falava-se de uns e de outros, discorria-se em voz alta a respeito da vida de cada qual e ao cair da noite fechava-se toda a gente nos diferentes andares do seu prédio como objectos guardados nas gavetas de uma cómoda.
Então principiava a grande noite.
Tudo quieto, soturno e morto...

Júlia César Machado, "Introdução" a Novo Guia do Viajante em Lisboa, Sintra, Colares, Mafra, Batalha, Setúbal, Santarém, Coimbra e Bussaco. 3ª edição. Lisboa, J. J. Bordalo, 1872. p. 3-9.

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