domingo, 16 de janeiro de 2011

Liberdade do vazio

As morais da autenticidade nasceram no século XVIII, mais ou menos ao mesmo tempo que o utilitarismo, e é a síntese destas duas escolas de pensamento que vemos hoje realizada na figura do "homem económico", empresário de si próprio procurando o sucesso individual em permanência. Numa sociedade simultaneamente mercantil e egotista, o desejo de si dispõe de todas as oportunidades de servir de protecção aos slogans publicitários: "porque eu sou merecedor".
Se a ideia de autenticidade parece a tal ponto compatível com um individualismo radical, é talvez por uma razão mais profunda. A exigência de adequação a si pressupõe a existência de um sujeito auto-suficiente cujo único projecto é o de viver em harmonia consigo próprio. Ora a questão que se coloca é a de saber se, de tanto querer encontrar-se a si próprio, não se perde o mundo e os outros. A promoção do Eu assenta geralmente na ignorância daquilo que ultrapassa o indivíduo; o passado e a tradição são rejeitados como não pertinentes, a comunidade é percebida como um entrave. De acordo com a fórmula consagrada, as morais da autenticidade seriam fundadas na liberdade, mas sobre uma "liberdade do vazio", que impõe a cada um a tarefa esgotante de estar à altura de si próprio.

Michaël Foessel, La Privation de l'Intime. Mises en Scène Politiques des Sentiments. Paris, Ed. du Seuil, 2088. p. 57.

2 comentários:

Isabel X disse...

O próprio Eu é uma criação da sociedade. Sociedade e indivíduo não são necessariamente categorias opostas: a sociedade faz-se de indivíduos.

Tudo depende do modo como formulamos a questão. É preferivel uma moralidade de práticas que evitem a crueldade em vez de presumir a existência de "morais de autenticidade" que configuram princípios inexistentes e, por isso, fundados na "'liberdade do vazio', que impõe a cada um a tarefa esgotante de estar à altura de si próprio."

Segundo Baudrillard, nem as religiões ou as ideologias impuseram aos indivíduos um conjunto de exigências tão dificil de satisfazer como as que se colocam, hoje em dia,a si mesmos, aqueles que se consideram plenamente livres e autónomos.

- Isabel X -

Isabel X disse...

Entretanto, sem que o procurasse para este fim, deparei-me com a citação de Baudrillard a que me referi no comentário anterior. A questão é colocada de um modo bem mais radical. Não resisto a transcrevê-la, embora a considere (talvez) um pouco excessiva.

O indivíduo no individualismo actual "C'est un converti à la religion sacrificielle de la performance, de l'eficacité, du stress et du timing - liturgie bien plus feroce que celle de la production - mortification totale et sacrifice sans appel aux divinités de l'information, exploitation totale de lui par lui-même, stade ultime de l'aliénation.
Nulle religion n'a jamais exigé autant d'un individu en tant que tel, et on peut dire que l'individualisme radical est la forme même de l'intégrisme religieux."
in Baudrillard, L'illusion de la fin ou la grève des événements, 1992, Paris, Galilée (p. 149)