quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

De viagem ao Minho, há cem anos. 2 - A fúria de renovar e reparar produziu no burgo lôbrego de D. Fr. Bartholomeu, tétanos d'asneira

Cortando a monotonia dos prédios, e a estagnação das ruas e dos largos, parochias d'architectura lardacea, capelas frias, abrem sobre a calçada as suas bocas d'adega; massas enormes de granito, clarescuradas de lichens e poeiras, onde nos baixos a humidade põe repasses de salitre, simulando nódoas de gordura. São pelo menos trinta e cinco santuários e cacifos devotos, entre as dez casas de beneficência, as nove ordens e irmandades, os dez conventos e as seis igrejas parochiaes que possue a cidade, e onde entre gralhadas de sinos a toda a hora ha serviços religiosos, particularmente gostados de damas flácidas e homensinhos de passapiolho, já carunchentos de corpo, e não tratando senão de pôr no seguro as almas de chicharro.
Aparte meia dúzia de palacetes recentes, modelados por architectos do Porto, no feitio de theatros de província, todos ou quazi todos os antigos grandes edifícios civis pertencem aos séculos XVII e XVIII, e devem ser obra de canteiros rudes e mestres d'obras macaqueando sem conhecimento do desenho, nem instinctos da graça d'ensemble, palações Luiz XV e Luiz XVI, por encomenda de fidalgos ricos, tão ignorantes e crassos como elles. Não percorri nenhum d'esses cazarões interiormente, e só pela vestidura externa ajuizo obras que como os palácios arcebispal, municipal, e seus congéneres, teem todo o cunho da barbaria lanzuda e do mau gosto. Á uma, a pedra talhavel é n'estes sitios um granito de bago grosso e conglomeração esferulada, mui rijo ao corte, e que facilmente fendilha sob o estylete do canteiro mais cauteloso. Não se lhe pode confiar ornatos mimosos, pois não consente, como o calcareo, para assim dizer formas precisas, arestas nitidamente acentuadas. Muito cedo enegrece, muito cedo também se faz rugoso e começa de puír, sob a chimica das chuvas e dos soes, a vincagem meuda e meios relevos que o artista na pedra levantou.
Á outra, a inaptidão dos architectos é como o lema visivel da inferioridade esthetica de quazi todos os núcleos de raça luzitana, de norte a sul dormida para o inestimável sestro da belleza, e vergonhosamente rebelde, ainda hoje, á comprehensão do papel sociológico da arte. Cimalhas macissas, sob que as paredes parecem estar gemendo; churriguerescos portões, de coruchéus embolados e tympanos mesquinhos; no andar nobre, janellas sem pé direito, como que vindo abaixo ao peso de chicoreas que pezam quintaes, e teem sobre a verga, ás vezes mais d'um terço da altura do portal; frontões macissos, olhos de boi, mansardas, frestas, resultando aspectos d'azylo e cour des miracles; átrios de sombra, calçados como cavalariças e sobre que não cae de cima a chapada de ceu d'um claustro d' arcos; ferros de sacada sem luxo de rocas e volutas; brazões friorentos de meio palmo, como de quem até tem medo de mostrar em pedra, os titules; telhados de tumba, com metade da altura das paredes, revirando nos cantos, como o dos pagodes chinezes, sem uma torre ou mirante, airando, gracil, sobre o rochedo macisso da rezidencia; decoradores da pedra sem o menor instincto do papel do ornato nos grandes lenços, e suas correlações filiadas num leit-motiv, como os trechos das operas na melodia synfonica inicial... nenhuma proporção nobre nas linhas, nenhuma poesia volúvel nos detalhes: e que mais queres, leitor, p'ra te desgostares da tua terra, e mandares ao demo a sensibilidade romba e a preguiça intelectual, polysecular, do portuguez?!
Tão paredes meias da Hespanha, cujas cidades e vilas regorgitam de construções graciosas ou solemnes, do Renascimento ou do período filipino, por vezes carrancudas, certo, mas nunca ridículas, plebeas ou banaes, a terra portugueza não conseguiu, visto as continuas discórdias da guerra e a inveterada negação artística dos filhos, transfiltrar da visinha irmã um pouco da elegância e nobreza d'aqueles seus florentes períodos constructivos.
Por Braga então este mau gosto da architectura civil provoca a náusea, e enche o visitante d'um rancor que a religiosa successivamente epileptisa. Sem duvida os constructores de taes templos, arcebispos e ricos homens, poderiam ter sido piedosas almas, extacticas d'imbecilidade mystica, mas que asinino desprezo da beleza, e que irrespeitoso systema de fazer Deus rezidir em armazéns!
Como os palácios, os templos, quazi todos pertencem de construção ou restauração ao mesmo periodo, séculos XVII e XVIII, épocas talvez em que Braga, pela fortuna agrícola ou difusão maior do espirito religioso, atingiria, suponho, na clientela devota, a máxima riqueza, visto o considerável numero de construções e restaurações datando d' elas. Grande parte d'essas igrejas são vastas, ricas: não houve talvez economia — a não ser n'uma ou noutra capela de talha, que as ha por aqueles cazarões, elegantíssimas, o que houve foi um mau gosto de frade e jezuita, atento o corresponderem aqueles dois séculos á decadência formal da sociedade portugueza, tendo sido, até D. José e D. João V, dos mais chochos e mortos para as artes. O mesmo em Hespanha, onde os architectos remendões do século XVII foram funestos á integridade d'um sem numero de maravilhosos edifícios que por lá vemos deturpados e emplastados, com dolorosa surpreza para os devotos d'aquela Itália moura e barbarenga.
Em Braga restauradores e constructores devem ter sido estúpidos masmarros, de cambulhada com arcebispos e municipios, irrespeitosos do antigo e incapazes de dar corpo a qualquer espécie de construção monumental. Sem duvida demoliriam e estragariam os edificos românicos e godos que os hábeis architectos galegos e leonezes(*) dos séculos XI a XVI por lá teriam edificado, e pelos troços que subsistem, cobertos de remendos e correcções d'epochas espúrias, fácil se apura a hecatombe odiosa que tem sido. A fúria de renovar e reparar produziu no burgo lôbrego de D. Fr. Bartholomeu, tétanos d'asneira a epileptisar de raiva a paciência de qualquer forasteiro iniciado. O que por Braga resta de genuinamente antigo é mui já raro, e esse, pouco mais vale do que como indicador de haver tido n'outro tempo aquela desengraçada terra, algo de bom. A torre do castelo, com os seus machicoulis, intacta, e que ainda ha poucos dias uma vereação imbecil quiz demolir, as ermidas da Conceição (1512) e S. João do Souto (1512), a Misericórdia (1562), uma ou outra casa ou janella manuelina, e finalmente a Sé, tornada n'um enorme cazarão d'escombros sem caracter, eis o que se pode ver d’antigo na architectura de cortiços e arcas de Noé que é o substrato moderno das casarias da cidade.


(*)Não faltam opiniões negando a competência, e mesmo existência, n'aquelas rudes edades, de genuinos architectos portuguezes, e convindo em terem sido estrangeiros, pela mór parte leonezes ou galegos, os auctores dos edifícios monumentaes do norte de Portugal. O secretario do Duque de Lencastre era architecto. Dadas as analogias da Batalha com cathedraes inglezas, quem sabe se teria sido ele o mysterioso auctor dos planos do mosteiro?!

Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 58-63.

Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.

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