quarta-feira, 14 de março de 2012

À janela de João de Araújo Correia

A procissão passava, com a Senhora no alto do andor, trémula de susto ou contentamento. Levada sobre ombros desiguais e em mau piso, tremia cheia de graça ou temor próprio de coração melindroso. Fosse como fosse, ora pro nobis... Também o alfaiate, mais trémulo de ano para ano, ia remoendo um pouco debruçado na janela, que era um leque de várias cores, o desgosto de não ser estimado nem admirado, como quem era, na sua terra natal - escondida entre pinheiros bravos, oliveiras cobertas de ferrugem e colossais cabeças de granito.
- Esta minha terra só tem fidalgarias. Mas se a Câmara quisesse, eu dava-lhe dinheiro para coisas úteis. Ponto é que se lembrasse de mim com alguma consideração... Dava-lhe uma escola e até lhe dava um hospital. Mas, não me está no ânimo fazer festas a galego - como se costuma dizer.
[...] Pois é ... Se a Senhora Câmara quisesse, tudo se poderia arranjar. Eu pagava o chafariz. Mas, em vez de chafariz, ficava melhor, no meio da praça, a minha estátua - com a fita estendida entre as mãos, no acto de tirar medidas. Não era preciso mais nada. Quero dizer: eu até pagava a relva do monumento, água para a regar e jardineiro capaz de a trazer espontada. Por minha morte, só para a relva, para a renovar e meter de permeio umas florinhas, deixaria eu o preciso - uma continha calada.
De ano para ano, tantas vezes olhou para o tremendo busto do soldado, que deixou de o ver. No lugar do corpanzil de trincheira, com a espingarda encostada ao peito, viu-se a si próprio, com a fita estendida no acto de tirar medidas.
[...] De tanto se ver, no lugar do soldado, começou a ser feliz, cada vez mais feliz de ano para ano.
[...] Areou-se-lhe o juízo. Mas, passou a alfaitaria sem impedimento. Casou com a actriz, vendeu a quinta do Sul e veio acabar os seus dias à cidade Natal - escondida entre pinheiros bravos, reboludos penedos de granito e oliveiras comidas de ferrugem. Sem sair da janela, que era ali o seu poiso, debruçava-se sob o rossio e deixava cair, sobre o passeio, um fio de baba glorioso.

João de Araújo Correia, "O Grande Alfaiate", in Tempo Revolvido. Régua, Douro Editora, 1974p.  57-61. 

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