segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Viajar? Para viajar basta existir.

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
«Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo.» Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.
s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. p - 387.

1 comentário:

Isabel X disse...

Tendo a acreditar nisto, mas (talvez) apenas porque me convém. Como em quase tudo aquilo em que acreditamos...

Para confronto, cito Deleuze, que prefere a fuga às viagens, através de testemunho dado a Claire Parnet:

"Fugir não é exatamente viajar, tampouco se mover. Antes de tudo porque há viagens à francesa, históricas demais, culturais e organizadas, onde as pessoas se contentam em transportar o seu 'eu'. (...) Fitzgerald diz ainda melhor: (...) A célebre Evasão é uma excursão em uma armadilha, mesmo se a armadilha compreende os mares do Sul, que são feitos apenas para aqueles que querem navegar neles ou pintar. Uma verdadeira rutura é algo a que não se pode voltar, que é irremissível porque faz com que o passado deixe de existir."

- Diálogos, Colectivo Bando(p.p. 31-32)