quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Pias

Carta a Ophélia Queiroz

Bebé:
Obtida a devida autorização do snr. eng. Álvaro de Campos, mando-lhe o poema que escrevi entre as estações de Casa Branca e Barreiro A, terminando a inspiração, entretanto, na Moita.
Este poema deve ser lido de noite e num quarto sem luz. Também, devidamente aproveitado, serve para fazer papelotes para as bonecas de trapo, para tapar as fechaduras contra o frio, os olhares e as chaves, e para tirar medidas para sapatos a pés que não tenham mais comprimento que o papel.
Creio que estão feitas todas as recomendações para o uso. Não é preciso agitar antes de usar.
Até logo.
Íbis
11/1/1930

Casa Branca — Barreiro A.
(Poema pial)
Toda a gente que tem as mãos frias
Deve metê-las dentro das pias.
Pia número UM,
Para quem mexe as orelhas em jejum.
Pia número DOIS,
Para quem bebe bifes de bois.
Pia número TRÊS,
Para quem espirra só meia vez.
Pia número QUATRO,
Para quem manda as ventas ao teatro.
Pia número CINCO,
Para quem come a chave do trinco.
Pia número SEIS,
Para quem se penteia com bolos-reis.
Pia número SETE,
Para quem canta até que o telhado se derrete.
Pia número OITO,
Para quem quebra nozes quando é afoito.
Pia número NOVE,
Para quem se parece com uma couve.
Pia número DEZ,
Para quem cola selos nas unhas dos pés.
E, como as mãos já não estão frias,
Tampa nas pias!

MOITA *

* Silêncio na estação à vontade do freguês.

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa: Ática, 1978 (3ª ed. 1994). p. 48.

1 comentário:

Isabel Soares disse...

Antes de tudo e apesar de tudo o amor tem de passar sempre por aqui. Por esta mistura homogénea de ternura, muita ternura, irónica consciência de ridículo e inteligência, que enternece os espaços de cada um dos sujeitos sem os invadir, numa postura afetiva de quem não se importa de ser ridículo e é feliz lembrando o outro e lhe diz que o lembra, na maior das ingenuidades.
Esta sua postagem trouxe-me o meu pai. Imagem séria e dura, implacável nos princípios, mas que sabia ser ridículo nos afetos. Nele o humor era muitas vezes cáustico, mas as palavras ditas, acompanhadas de um sorriso redondo eram, por norma, uma leve e divertida ode ao amor que nos devotava.
Nada tendo a ver com Pessoa, foi uma pessoa que soube amar. A ausência encheu-se de lembranças...