segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O rebanho é os meus pensamentos

IX - Sou um guardador de rebanhos.

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 39.

5 comentários:

Isabel X disse...


Conhecer este texto, sentindo-o em nós, é um encontro único na vida. Uma oportunidade. Nenhuma outra poderia ter em nós o mesmo efeito. E em cada um de nós de um modo diferente. Há qualquer coisa que em nós se modifica e isso faz-nos sentir de um modo novo.

É o devir (de que nos fala Deleuze), ou seja,o que deixamos de ser e nos modifica. Mais ainda do que aquilo em que nos tornamos.

Não é por acaso que Alberto Caeiro era o mestre.

S. J. disse...

Cuidado com as lições deste Mestre, grande Fingidor, como ele se sabia e nós o sabemos.
Esta história de momentânea invenção da felicidade tem...

CONTINUAÇÃO

"Quem me dera que eu fosse o pó da
estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, XVIII

Isabel Soares disse...

Perspetiva do pastor. Está visto. A ovelha ruça preocuparar-se-á com o lobo mau :) (ou seria ao contrário? Há aqui qualquer coisa que não me parece bem...)


Eu já tinha prometido a mim mesma que não voltaria a comentar aqui, para evitar estes ataques intempestivos de irreverência com que o arrelio. Não sei se quebrei a promessa se não terei prometido com o devido empenho, mas vou esforçar-me mais... Prometo!:)

João B. Serra disse...

Isabel S., não prometa o que não é da sua natureza cumprir... De resto, só tenho de lhe agradecer o seu comentário, por mais irreverente, que lhe pareça. E, como sabe, parecer não é ser...

Isabel Soares disse...

O aliciante das suas publicações é tentar adivinhar o homem por detrás das palavras dos outros.
É como estar sempre à beira do abismo, sem nos atrevermos a dar o salto do que parece ser, porque o nevoeiro de que se veste, não nos deixa vislumbramos o que é.

Simplificando:as suas metáforas fazem faiscar os meus neurónios. Só tenho dois. Receio um curto-circuito...